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A mulher gravada

PIGLIA, Ricardo. Homenagem a Macedonio Fernandez. Margens/márgenes. Revista de cultura n° 2, San Pablo, octubre de 2001

Published onOct 15, 2020
A mulher gravada

Durante uns meses, há alguns anos, vivi no Hotel Almagro, em Rivadavia com Castro Barros. Muito próximo do hotel está a Federação de Box e nas quartas-feiras à noite eu ia ver as lutas. Na porta do estádio ficava uma mulher que vendia flores e que tinha uma foto de Macedonio Fernández presa ao vestido. Chamava-se (ou chama-se) Rosa Malabia e durante vários meses eu a encontrava na porta da Federação de Boxe e a convidava para tomar chá na confeitaria "As violetas". Nunca soube onde ela vivia, porque ela nunca quis me dizer isso, suponho que também alugava algum quartinho em um hotel da região ou dormia em um saguão. Tornava seu café da manhã na igreja evangélica e comia o que lhe ofereciam os vendedores do Mercado que ficava em frente da pensão. Tinha conhecido Macedonio quando menina, aos quinze anos, quando ainda ia à escola. Dizia que naquele tempo Macedonio ocupava um quartinho em um hotel em Morón ou em Haedo e que ela o visitava porque vivia por ali e que seu pai era médico. Nunca soube de onde havia tirado a foto e nunca soube se o que me contava era verdade. Suponho que realmente o tinha conhecido e que o tinha amado; às vezes ficava calada por um momento e depois me dizia que ela era "totalmente macedoniana" e com isso talvez quisesse me dizer que era inocente. Às vezes, de súbito, ausentava-se um pouco e me olhava com olhos vazios e dizia que estava morta e que tinha todo o corpo oco por dentro, como se fosse uma boneca de porcelana. Entrava e saía do Hospício, desaparecia dois ou três dias e de repente voltava a aparecer na porta da Federação de Boxe vendendo flores que roubava das tumbas no cemitério da Chacarita. Chamavam-na a louca do gravador, por-que carregava um gravador de fita cassete, velhíssimo, como seu único pertence. Parece que anos antes havia trabalhado num negócio onde se consertavam televisores e gravadores, num local nas passagens subterrâneas da 9 de Julho, e que o deram como indenização quando a despediram do emprego. Carregava-o em uma pequena valise de papelão e o escutava quando estava sozinha. De um dia para o outro, não a vi mais. Disseram-me que a tinham internado no Moyano, mas quando fui visitá-la não me reconheceu ou não quis me receber. Vários meses depois, numa tarde, chegou-me uma encomenda com o gravador. Ele tinha sido mandado de Olavarría e nunca soube se foi ela ou algum parente que se deu ao trabalho de recordar-se de mim e mandar-me o aparelho. Era um velho Geloso de duas cabeças e, se agora alguém o liga, primeiro se escuta uma mulher que fala e parece cantar e depois a mesma mulher conversa sozinha e por fim uma voz, que pode ser a voz de Macedonio, diz umas palavras: "É o que sonhas encontrar em mim, o que eu ansiara ser, o que cuida ainda das sombras às coisas, para que não as abisme o Dia, o Real em transparências do ser delas, do que ama tudo e tudo diz". Esse gravador e a voz de uma mulher, que crê estar morta e vende violetas na porta da Federação de Boxe da rua Castro Barros, foram para mim a imagem inicial da máquina de Macedonio em meu romance A cidade ausente: a voz perdida de uma mulher com a qual Macedonio conversa na solidão de um quarto de hotel.

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