BATALHA, Martha. “Entrevista”, Cult, revista brasileira de literatura, ano II, nº 14, setembro de 1998, pp. 4-7.
Um desconhecido escritor argentino chamado El ganhou recentemente o Prêmio Planeta, levando para casa US 40 mil por seu romance Plata quemada. O escritor, na verdade, chama-se Ricardo Piglia, e o livro, que na tradução significa Dinheiro queimado, foi lançado em agosto no Brasil pela Companhia das Letras (leia resenha na pág. 10). Nesta entrevista, o autor de Cidade ausente e Respiração artificial fala sobre a experimentação literária de Dinheiro queimado, em que procurou estender e aprofundar ao máximo um acontecimento corriqueiro da crônica policial argentina. Sobre a literatura brasileira, ele lembra de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que leu na versão original, tendo a impressão de que fosse uma língua inventada. Piglia também critica os suplementos literários, afirmando que deveriam ser tão gostosos de se ler quanto os cadernos de esportes. E afirma que a crítica literária é mais perecível que a literatura. O que, como ironia do destino, faz com que seja mais passageira do que os livros que critica, justamente por perderem seu valor com o tempo.
Seu último livro, Dinheiro queimado acaba de ser lançado no Brasil. O que os leitores podem esperar..
O livro é baseado em fatos !reais, em um acontecimento da crónica policial de 1965, uma mvestigaçao. Fiz a primeira versão da história em 1970, retomando-a muito tempo depois. É a história de um bando que rouba um banco e foge para Montevidéu, onde resiste durante três dias. Numa atitude suicida, decidem queimar o dinheiro roubado. É uma situação trágica, característica da América Latina. Minha intenção foi tratar esse feito minúsculo, local, como uma grande tragédia, um acontecimento importante da História. Era um fato, a princípio, insignificante, mas que pode crescer e se tornar fascinante para um novelista. As personagens da história me conquistaram, a consciência daquelas pessoas, postas numa situação limite por serem capazes de afrontar a morte. Queria fazer uma experiência com a tradição, trabalhar um romance que partisse de acontecimentos reais e ao mesmo tempo ver até onde se poderia ampliar este feito. O desafio maior foi contar a história com uma linguagem que pertencesse ao mundo daqueles bandidos.
Existem livros de ficção que são considerados universais. Existe alguma teoria da literatura que possa ser considerada universal?
O problema central da critica literária é que ela envelhece muito rápido, mais rápido do que a literatura. Existe uma ilusão por parte da critica, a falsa idéia de que os livros de ficção se perdem com o tempo, mas quem se perde fia critica. Roland Barthes, por exemplo, que parecia central e definitivo há 15 anos, hoje está praticamente sepultado. As hipóteses teóricas envelhecem. Mas alguns críticos con.guiram superar a língua e o tempo e conseguiram se manter, pelo menos até agora, como Erich Auchach e Walter Benjamin. Também admiro muitíssimo o crítico ramo Tynianov, que conseguiu construir hipóteses que superaram a época em que foram escritas. Algumas hipóteses formuladas pelos críticos literários são eficientes para pensar questões não apenas literárias, podendo funcionar em diferentes contextos, mas o problema central é que envelhecem muito rápido.
Em uma recente palestra dada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, você disse que os jornais não oferecem bons cadernos literários. O que é, na sua opinião, um bom caderno literário?
Eu me referia aos cadernos literários dos jornais argentinos, não sei como são no Brasil. Acho que um bom caderno literário deve ser escrito por gente que seja interessada em literatura para quem gosta de literatura, assim como o suplemento de esportes agrada a quem gosta de esportes. Mas geralmente m cadernos literários não têm respeito pelo leitor e acabam discorrendo sobre particularidades que não interessam nem a..pecialistas. O que acontece na maioria dos jornais argentinos é que os suplementos literários são de segunda importância, como. tivessem que criar interesse nos leitores, como se o público não existisse. Mas a literatura tem um público ré preciso cultivar esse público, em vez de buscá-lo onde ele não está.
Já que estamos falando sobre o leitor, quem é ele, num mundo cada vez mais massificado?
Os leitores são sempre minoria. Mesmo ant. da expansão da cultura visual, mesmo no século passado. Quando era jovem, tinha um grupo de amig. que g.tava de rock e futebol Também gostávamos de ler, e éramos minoria. Ler e escrever são acontecimentos centrais na minha vida. Algumas leituras faço por exigências profissionais, mas a maioria é ocasional e espontânea, feita por prazer.
Você se identifica como um escritor latino-americano? Existe essa diferenciação?
Sou latino-americano, pertenço arara cultura, mas ela é cada vez menos uma unidade monocórdia. A América Latina está cada vez mais . diferenciando por regiões e a literatura latino-americana segue o mesmo caminho, está se caracterizando por áreas. Existe hoje uma literatura do Caribe, do Rio da Prata, das diferentes regiões do Brasil.
Você disse recentemente que a situação social da América Latina talvez seja a única coisa em comum para todos os escritores latino-americanos. Mas o escritor tem que responder sobre essa questão?
Temos a mesma responsabilidade dos escritores de outras regiões do mundo. É lógico que a questão social interfere em nossas vidas, estamos preocupados com a situação e temos posições políticas claras, mas não temos que nos sentir inferiores a outros países que têm uma literatura de conteúdo.
Que você conhece da literatura brasileira?
Admiro muitíssimo Clarice Lispector e Osman Lins. Acho Clarice particularmente especial. Também me interesso muito por Guimarães Rosa e Machado de Assis. Li Grande sertão: Veredas na versão original e achei que fosse uma língua inventada, fiquei fascinado. Não foi fácil, mas li com paixão e, ajudado por amigos. Depois li os contos, que são mais claros e limpos.
Que acha do Brasil como país?
É um país fascinante, que infelizmente conheço pouco. Parece-me que a tradição africana dá ao Brasil uma particularidade, um toque único. A riqueza cultural é grande e a música é ao mesmo tempo sofisticada e popular. Admiro o tipo de vida dos brasileiros.
Fale um pouco sobre o trabalho com Hector Babenco, em Fbolüh hea,.t.É um filme para o público ou para a crítica?
Fiz este filme para mim e Babenco. É um filme de autor. Foolish heart era uma história que ele queria contar, ligada a acontecimentos de sua vida. Vamos ver no que vai dar, não sei como o público vai reagir. O que sei é que foi escrito com liberdade e paixão.
Qual o rumo da teoria literária, depois do pós-modernismo e de ela ter-se concentrado sobre o receptor (leitor)?
Tenho a sensação de que a teoria literária substituiu a teoria social, já que discute hoje elementos que antes eram da sociologia. Grandes filósofos contemporâneos, como Foucault, usam a literatura como exemplo de moral. A teoria literária mexe hoje com a questão da linguagem, das minorias, dos gêneros, que são questões sociais. Quando as teorias sociais entraram em crise, a teoria literária tornou-se o espaço da experimentação dessa discussão. Grandes hipóteses de filósofos como Michel Foucault e Gilles Deleuze foram formuladas a partir da literatura.
Que você está escrevendo atualmente?
Estou fazendo um romance curto, sobre um artesão de jóias. É um homem anônimo, que tem a tradição familiar de moldar diamantes. Fechado em seu mundo, ele tem a ilusão de fazer a jóia perfeita. O romance vai se chamar El Joiero.
Por muito tempo a literatura latino-americana viveu o conflito entre o local e o universal. Isso ainda acontece?
Não. Hoje estamos pensando e escrevendo na América Latina uma literatura que tem o mesmo nível da feita no resto do mundo, uma literatura de primeira qualidade. Antes, não era assim. Havia grandes escritores, isolados, mas a produção geral era diacrônica em relação à feita na Europa, por ecemplo. Hoje estamos em sincronia com eles, lado a lado com o melhor que se produz na literatura contemporânea.